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Uso de RPG na psicologia atrai o interesse de crianças e adolescentes

RPGs, ou Role-Playing Games (Jogos de Interpretação de Personagens, em português), são um gênero de jogos em que os participantes assumem papéis de personagens fictícios em um cenário imaginário ou baseado em uma narrativa pré-estabelecida. Nesses jogos, os jogadores dão vida aos personagens, tomando decisões que afetam o desenvolvimento da história. Embora o conceito de interpretar personagens possa ser rastreado até a Antiguidade, o que conhecemos como RPG hoje surgiu em 1974 com “Dungeons & Dragons” (D&D), criado por Gary Gygax e Dave Arneson. D&D foi fortemente influenciado por jogos de guerra e histórias de fantasia, como O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien.

Para além das mesas entre amigos e familiares, o RPG tem sido usado como uma ferramenta terapêutica na Psicologia e em outros campos relacionados à saúde mental. O RPG terapêutico envolve a utilização dos elementos do jogo para ajudar os pacientes a lidarem com questões emocionais, desenvolver habilidades sociais, melhorar a autoestima e explorar e resolver problemas pessoais. É importante ressaltar que o RPG terapêutico é conduzido de forma diferente do RPG de entretenimento tradicional. O foco principal não é apenas no jogo em si, mas na experiência terapêutica que ele proporciona.

Os psicólogos Sérgio França e Bruno Pontes são dois dos sócios de uma clínica em Goiânia que adotou o RPG como ferramenta para a terapia de grupo para o público infanto-juvenil. Os dois se conheceram na faculdade, em um laboratório de pesquisa de analistas do comportamento, e ambos já conheciam e jogavam RPG. A aplicação é feita em intervenções de grupo por meio da análise do comportamento aplicada, atendendo principalmente crianças e adolescentes com transtorno do espectro autista (TEA) e com Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Os profissionais atendem atualmente cerca de 20 pacientes divididos em diversos grupos. “O RPG chama muito a atenção porque suas qualidades terapêuticas são quase evidentes: muita comunicação, interação, requer o desenvolvimento de habilidades sociais. Nenhuma simulação e outros estilos de jogos lidam com interação social do mesmo jeito”, avalia Bruno Pontes.

“O centro das nossas intervenções é a motivação. Vamos utilizar dessa empolgação que os jogadores têm para que a aprendizagem ocorra de forma mais fácil, fluida e permanente. Passamos, então, a adaptar e desenvolver sistemas com foco no desenvolvimento dos objetivos terapêuticos”, relata Sérgio França. Para isso, os dois psicólogos utilizam cenários e formatos baseados em D&D e Pathfinder: fantasia heroica em que os jogadores derrotam dragões, salvam reinos e obtêm tesouros. Para jogar, basta ter dados, papel e caneta: os jogadores fazem de conta e rolam os dados para superar desafios.

Para jogar RPG, basta ter papel, caneta e dados (Foto: Freepik)

Esta perspectiva atrai o interesse dos jogadores, porém o sistema é severamente modificado para que possa atender às demandas de cada um para atingir os objetivos terapêuticos de forma gamificada. Inicialmente, é feita uma entrevista com os pais e, a partir disso, são iniciadas terapias individuais por alguns meses para que sejam observadas as habilidades e necessidades dos pacientes, que mais tarde serão inseridos em grupos com jogadores com os mesmos interesses e idades.

Os ‘RPGs heroicos’ costumam ter muito foco na ação e no combate. Na versão adaptada de Bruno e Sérgio, são as interações que viram o foco. “As sessões ainda vão ter momentos de combate, mas em uma escala muito menor. As narrativas vão levar os jogadores a necessariamente buscarem resoluções mais pacíficas, envolvendo interações sociais e comunicação. Aí, quando eles se saem bem nesse engajamento, eles são recompensados dentro do jogo, validando aquela ação”, explica Bruno.

Dessa forma, os momentos de combate e ação acabam sendo mais como recompensas, e não desafios: resultado de terem conquistado o verdadeiro objetivo de alcançar as resoluções terapêuticas dentro do cenário apresentado.

Interesse renovado e perspectiva acadêmica
A psicóloga Lenita Lencioni faz atualmente uma especialização em teoria cognitiva-comportamental pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) com o objetivo de dar continuidade ao mestrado e doutorado. Sobre o RPG, ela garante que os resultados são satisfatórios quando o assunto envolve saúde mental e interações. “O RPG sempre fez parte da minha vida, desde os 12 anos de idade, e sempre gostei bastante, sempre foi uma experiência muito importante e que me ajudou a me desenvolver socialmente, a ser uma pessoa mais cooperativa. Você percebe os frutos quando adulto: a importância de perseverar, de ter objetivos, e meu objetivo é poder compartilhar isso com as pessoas e permitir que crianças e adolescentes possam ter esse desenvolvimento da mesma forma que foi pra mim: aprendendo e me divertindo”, relata.

Lenita segue pesquisando alguns artigos que falam da relação desse mundo com a psicologia, mas o que ela mais conhece até agora é experienciado e aplicado. “Eu utilizo o RPG na terapia, na abordagem cognitiva-comportamental, como uma técnica de ludoterapia, que é psicoterapia voltada para o tratamento psicológico de crianças, e quero consolidar essa maneira de atender de forma científica e teórica. As pesquisas ainda são muito frescas e recentes”, conta. No momento, ela utiliza em sua prática clínica o sistema Hero Kids, um jogo de RPG voltado especificamente para crianças.

‘Pathfinder’ é um dos sistemas heroicos que servem de base para atrair jogadores (Imagem: divulgação/Paizo)

De fato, apesar de o RPG ser estudado academicamente de alguma forma desde o começo dos anos 1990, os artigos e pesquisas ainda são dispersos, atomizados em diferentes áreas, recortes e com lacunas de tempo entre eles. Um novo interesse surgiu no Brasil e no exterior desde meados dos anos 2010, mas ainda está distante de ter um corpo vasto.

“Talvez existia uma resistência por parte da academia em relação ao tema, a gente sabe que por muito tempo houve um preconceito grande com esses jogos, mas, percebendo a necessidade de diminuir a exposição das crianças ao meio eletrônico, e por estar se tornando muito popular, acho que é um momento de grande abertura em relação a isso”, avalia Lenita. “O que ainda impede um pouco é o fato de as pessoas não conhecerem e não saberem como funciona, mas ainda assim vejo que muita gente tem curiosidade e vontade de conhecer e jogar, mas há uma escassez de narradores de jogo e de mesas, o que impede uma adesão de mais pessoas”, completa.

Na sua experiência, inclusive, Lenita relata que o jogo tem uma alta capacidade de engajamento, o suficiente para que os jovens esqueçam das redes sociais. “Quando a gente tem uma narrativa bem consolidada e um jogo envolvente, que flui, ninguém pega no celular. Através da ludoterapia, eu tenho uma gama de ferramentas para usar. Podemos desenvolver algumas técnicas para abordar demandas específicas de cada paciente, em um mundo que o paciente tem afinidade e com o qual ele vai se engajar, criando um espaço seguro por meio da narrativa”, conclui.

Psicóloga Lenita Lencioni utiliza o RPG no consultório (Foto: acervo pessoal)

Os psicólogos Sérgio e Bruno relatam que também querem buscar levar o tema para o mestrado e doutorado. Enquanto isso, buscam encontrar melhores metodologias e formas para coletar e registrar dados. Segundo Sérgio, ter um respaldo acadêmico irá conferir solidez ao tema e à abordagem, além de silenciar possíveis críticas. “Quando a gente tem, de fato, um método de pesquisa com resultados objetivos e quantificados e isso é apresentado em forma de artigo e validado pela comunidade, isso melhora nossa prática como terapeutas para observar quais são os melhores caminhos para que tenhamos os melhores resultados possíveis”, explica. “E isso gera modelos que podem ser aplicados e replicados pela comunidade”, completa Bruno.

Influências
Como dito por Lenita, o RPG atualmente passa por um momento de redescoberta e popularidade. Esse renascimento tem a ver com alguns fenômenos de cultura pop. O principal é Stranger Things, da Netflix. No seriado, os personagens não apenas jogam D&D como usam o cenário para nomear e interpretar os acontecimentos e aventuras da própria série.

Série ‘Stranger Things’ ajudou a reacender o interesse dos jovens por RPG (Foto: Netflix)

Outro fenômeno, mais restrito aos adolescentes, é A Ordem Paranormal, uma websérie brasileira criada pelo streamer Rafael “Cellbit” Lange e dirigida por Júlio Taubkin, na qual uma equipe de influenciadores joga RPG de mesa em um sistema e cenário criados por ele. O show começou a ser transmitido em 29 de fevereiro de 2020 pelo canal da Twitch de Cellbit e atrai centenas de milhares de fãs.

E a prática tem gerado resultados. “Em poucos meses, as famílias elogiaram muito e notaram mudanças no comportamento dos filhos nas interações com os pais, com os colegas. Eles estavam fazendo interações mais assertivas”, conta o psicólogo Bruno. “Tivemos um aumento muito grande no relato de evolução. Como as mudanças ocorrem mais rápido, os familiares percebem com mais facilidade, justamente por causa deste engajamento: os jogadores saem da sessão comentando, falando de suas experiências”, pontua.

Sérgio salienta que, na visão dele, o ponto mais forte da abordagem com o RPG é o engajamento criado pelo formato, capaz de gerar efeitos duradouros. “Muitos pacientes chegam falando pra gente que querem muito ter amigos, mas que têm muitas dificuldades na escola e que se sentem muito só. Ouvimos este tipo de relato com frequência. Então eles encontram aqui um ambiente validante em que engajam em uma atividade divertida que desenvolve novas habilidades e cria novos vínculos”, finaliza ao destacar que é crescente a procura pelo método.

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