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MPGO investe em educação e apoio jurídico para frear violência contra mulher

Olhar triste, cabelos sempre presos, e o batom que antes era seu preferido já não faz parte de sua rotina. Seu jeito de se vestir mudou, e a vontade de se arrumar desapareceu. Quem a conhecia mal a reconhece, tamanha é a transformação. A família quase não tem mais notícias, e as amigas, menos ainda. Aos poucos, ela foi se afastando de tudo e de todos: dos sonhos, do trabalho e, em alguns momentos, até da própria vida. Esse retrato, muitas vezes invisível aos olhos da sociedade, pode ser o reflexo de um cenário trágico: a violência doméstica. Um crime que, frequentemente, se inicia com o abuso psicológico, seguido de agressões físicas e patrimoniais, e que, em seu desfecho mais cruel, pode levar à morte da vítima.

 

No último ano, todas as formas de violência contra a mulher aumentaram em todo o país, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em julho de 2024. A violência doméstica, por exemplo, registrou um aumento de 9,8%, com 258.941 casos. Crimes como stalking e violência psicológica também cresceram de forma expressiva, com aumentos de 34,5% e 33,8%, respectivamente. O levantamento também revela que 64,3% das vítimas de feminicídio foram mortas em casa, e que 63% dos agressores eram parceiros íntimos, enquanto 21,2% eram ex-parceiros.
Em Goiás, os casos de feminicídio permaneceram inalterados entre 2022 e 2023. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-GO), foram registradas 56 ocorrências em cada ano. Em 2024, os números seguem alarmantes, com 20 mulheres assassinadas apenas entre janeiro e junho. Esses dados podem ser ainda maiores, considerando a subnotificação decorrente da ausência de denúncias.
Por outro lado, um levantamento do Ministério Público de Goiás (MPGO) revela que a população está mais atenta às denúncias de violência contra a mulher, incluindo o feminicídio. Entre 2021 e 2023, foram realizadas 17.940 denúncias no estado, enquanto outros tipos de crimes apresentaram queda. Apesar do aumento no número de denúncias, a violência contra a mulher continua sendo um dos maiores desafios para a segurança pública em Goiás.
A pergunta que se impõe é: o que precisa ser feito para mudar esse cenário? Para o coordenador da Área de Direitos Humanos do Centro Operacional do MPGO, promotor de Justiça Marcelo Machado, é necessário investir em políticas públicas que tratem a raiz do problema, indo além da atuação policial ou penal.
Nesse contexto, o promotor destaca o projeto Goiás Por Elas, criado pelo governo do estado em março de 2023. O programa oferece auxílio financeiro de R$ 300 mensais por até 12 meses para mulheres com medidas protetivas e em situação de vulnerabilidade social. Para ter acesso ao benefício, as mulheres precisam estar inscritas no Cadastro Único do governo federal e se enquadrar em situações de extrema pobreza, pobreza ou baixa renda. O programa é uma parceria entre o MPGO, o Tribunal de Justiça (TJ-GO) e a Defensoria Pública (DPE-GO).

“Vivemos em uma cultura machista que alimenta esse tipo de violência. Portanto, precisamos de ações voltadas à assistência social, que promovam o acolhimento e o afastamento da mulher do ambiente violento. Políticas públicas que incentivem a independência financeira e a profissionalização dessas mulheres são fundamentais para romper o ciclo de violência”, ressalta o promotor em entrevista ao jornal A Redação.

Com o intuito de reforçar essas medidas, o MPGO criou o programa “Mulher mais Protegida”, que visa implementar ações extra-penais em todo o estado. O programa inclui a criação de leis municipais, grupos de trabalho interinstitucionais e a ampliação do suporte jurídico às vítimas, além de um plano geral de atuação.

Mulher mais Protegida – ações estratégicas

O principal objetivo do programa é aprovar, até dezembro deste ano, leis que promovam políticas públicas municipais voltadas ao atendimento das mulheres e ao combate à violência doméstica. O programa busca garantir efetivamente os direitos das mulheres, sensibilizando a sociedade para a violência de gênero, principalmente por meio de campanhas educativas nas escolas, como oficinas lúdicas e rodas de diálogo com crianças e adolescentes.

Número de mulheres mortas por ex-companheiros dispara em todo o País (Foto: Fábio Pozzebom)

Outro destaque é o suporte jurídico oferecido às vítimas e a criação de grupos reflexivos para homens. Segundo Marcelo Machado, em Itumbiara, onde os grupos reflexivos já são realizados, houve uma redução significativa na reincidência de agressores. O programa “Refletir para Transformar” também foi implementado na Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG), em Aparecida de Goiânia.

Programa Refletir para Transformar: uma iniciativa pioneira

O programa “Refletir para Transformar”, idealizado pelo MPGO, é pioneiro no Brasil por levar grupos reflexivos sobre violência doméstica ao sistema prisional. No dia 6 de setembro de 2024, 11 reeducandos condenados por crimes relacionados à Lei Maria da Penha participaram da solenidade de conclusão das atividades e receberam certificados. Durante três meses, eles participaram de 10 encontros que abordaram temas como direitos humanos, violência, vínculo conjugal, Lei Maria da Penha, paternidade, saúde, e o impacto do álcool e das drogas.

Reeducandos da penitenciária (Foto: Ministério Público)
A promotora de Justiça Ana Maria Rodrigues da Cunha, idealizadora do projeto, destacou que a experiência foi transformadora para os reeducandos e para todos os envolvidos. Ela espera que o projeto seja replicado em outras unidades prisionais.

Promotora de Justiça Ana Maria Rodrigues da Cunha (Foto: Comunicação MPGO)

O “Refletir para Transformar” faz parte de uma série de iniciativas do MPGO voltadas à ressocialização no sistema prisional, com o objetivo de fomentar práticas sociais educativas. A professora Andressa Teodoro foi contratada para elaborar a proposta de atuação dos grupos reflexivos, coordenar as atividades e capacitar os facilitadores.

Assista ao vídeo, disponível no canal do YouTube do MPGO, sobre o projeto realizado na POG:
Direitos das mulheres e o papel da denúncia
No Brasil, o Observatório da Mulher contra a Violência aponta a necessidade de maior visibilidade aos direitos das mulheres. Segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero, oito em cada dez mulheres se consideram mal informadas sobre a Lei Maria da Penha. Muitas também desconhecem a rede de proteção disponível para romper com o ciclo de violência.
Em Goiânia, o Batalhão Maria da Penha acompanha periodicamente as mulheres que realizam denúncias, com visitas presenciais às residências das vítimas. “A mulher vítima de violência tem direito a assistência social, de saúde e psicológica, oferecendo um acolhimento mais amplo”, afirma Isabela Lima, presidente do Instituto DataSenado.
(Foto: Polícia Mitilar)
Denúncias salvam vidas
A delegada Cybelle Tristão, da Polícia Civil, destaca que muitas mulheres deixam de denunciar por medo de retaliações do agressor ou por não acreditarem que terão acompanhamento adequado. “Infelizmente, muitos homens ainda veem suas parceiras como propriedade. Elas não têm o direito de sair, ter vida social ou trabalhar”, alerta a delegada.
Tristão reforça que a denúncia é fundamental para interromper o ciclo de violência. Apenas através dela o agressor pode ser preso, e as investigações conduzidas com celeridade. Embora seja uma medida de curto prazo, a delegada acredita que a educação pode transformar a cultura machista, ressaltando a importância de abordar o tema nas escolas.

Delegada Cybelle Tristão (Foto: Polícia Civil)
Além dos canais tradicionais, como o 180, o 197 e o 190, Goiás recebe denúncias on-line, sem a necessidade imediata de laudo pericial. O sinal vermelho desenhado na mão, aceito em cartórios e farmácias, também é uma maneira discreta de solicitar ajuda.
“A vítima, muitas vezes, liga para pedir uma pizza ou um remédio como código para denunciar, sem que o agressor perceba”, explica Cybelle Tristão ao destacar que as políticas públicas são essenciais para conscientizar e encorajar as mulheres a denunciar seus agressores.
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