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Marinho usa vida de luta contra racismo para conscientizar filha: “Seu cabelo é lindo”

No Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, atacante relembra primeiros contatos com racismo na infância e revela conversas com filha

Ainda criança, o pequeno Mário Sérgio precisou enfrentar o racismo pela primeira vez. Na escola, bolsista e único negro da sala, ia de bicicleta enquanto os demais iam de carro. Com as mãos sujas de graxa porque “a corrente da bike sempre soltava”, perdeu a conta de quantas vezes chegou chorando em casa dizendo não querer estudar em “escola de rico”.

Mário Sérgio virou Marinho e, aos 34 anos, ainda precisa driblar o racismo. Atacante do Fortaleza, tornou-se voz ativa na luta antirracista e nunca se curvou ao preconceito. Em entrevista exclusiva ao ge para o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, o jogador iniciou a conversa com um protesto: “As pautas só começam quando está perto de chegar nesse dia”.

Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Marinho já perdeu a conta de quantas vezes precisou lidar com o racismo. Em um dos episódios, foi vítima de preconceito por um chefe de cozinha em um restaurante.

— Me ligaram para defender o cara, dizer que ele era gente boa, era amigo. Ali eu vi que não tinha amizade. Você, por ser meu amigo, a gente ter o mesmo tom de pele, você deveria ter confrontado ele. E você não o fez. E eu aprendi a me afastar de pessoas assim. Eu não posso abraçar pessoas racistas — decreta.

O primeiro contato com o racismo

A infância em Penedo, interior de Alagoas, não foi fácil. De origens humildes, Marinho foi bolsista na escola. Enquanto ia de bicicleta, os coleguinhas iam de carro. Chorar em casa, nos braços da mãe, era rotina ao voltar do colégio após encarar o preconceito pelas primeiras vezes.

— Desde cedo a gente começa a passar por situações desagradáveis. Ah, fulano é bolsista porque não tem dinheiro para estudar. Ah, fulano mora num bairro tal porque é pobre. Aquilo era uma coisa que me tirava qualquer reação. Aquilo me entristecia — relembra.

Hoje, Marinho é casado com a esposa Francielle e tem uma filha de oito anos, Alícia. As condições são outras. Com mais recursos, o jogador pode dar à filha uma vida que não teve na infância.

Desde cedo, precisou conversar com a pequena sobre o tema. Para o atacante, a educação precisa começar dentro da própria casa.

Minha filha vai crescer sabendo a história do pai. E ela vai aprender para que nunca repita isso com ninguém. Uma vez, uma criança falou para a minha filha que o cabelo dela era feio. Ela tem o cabelo cacheadinho, ela é da minha cor. Eu disse para ela: “Filha, seu cabelo é lindo, não se preocupe com isso”
— Marinho, atacante do Fortaleza.
Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Em 2023, foram registrados 136 casos de injúria racial no futebol brasileiro — em 2022, foram 98. A maior parte dos incidentes ocorreu nos estádios — 104 no total. Depois aparecem os casos na internet (19) e em outros espaços (13).

— A gente precisa cuidar dessa nova geração. A rede social deixa tudo muito explícito. Temos que cuidar bem, educar bem. Eu falo que o mundo hoje em dia não vai ensinar nada legal. Na rede social, o tolo ganha voz. Essa geração que vem aí é para mudar o mundo. E a minha filha vai crescer tendo o ensinamento, a educação como base. O que o mundo vai ensinar para ela talvez não seja algo legal. Por isso que eu pego no pé dela para que ela tenha um entendimento daquilo que é verdadeiro — completa.

Rei da América na senzala?

Em um dos clubes que defendeu ao longo da carreira, Marinho tinha um companheiro que o chamava de “macaquinho”. Se na época percebia a situação como uma brincadeira, hoje não vê o apelido com os mesmos olhos.

As pessoas falavam de uma forma como se fosse brincadeira, como se fosse legal, mas na verdade não era. Você começa a entender que aquele já era um tempo em que as pessoas cometiam racismo contra você”
— Marinho, atacante do Fortaleza.

Revelado pelo Penedense aos 14 anos, o atacante rodou o país. Acumulou passagens por grandes clubes do futebol brasileiro como Cruzeiro, Grêmio, Santos e Flamengo.

Pelo Peixe, em 2020, foi eleito o Rei da América — melhor jogador da Libertadores daquele ano. No mesmo ano, foi alvo de comentários racistas por um comentarista de uma rádio.

Na ocasião, o radialista disse que o atleta iria para a senzala após ter levado um cartão vermelho. Marinho gravou um vídeo nas redes sociais e criticou: “preconceituosos, vermes”.

No futebol brasileiro, Marinho cobra representatividade. Ele elogia Róger Machado, único técnico negro a comandar um time da Série A do Brasileirão. No entanto, frisa a competência do treinador, não apenas a cor da pele.

— Eu joguei com o Róger. Eu estava subindo no Fluminense e ele estava no elenco. A nossa cor é algo que nos orgulha. Mas o trabalho dele não é nem pela cor, e sim pela qualidade, pelo conhecimento que ele tem, pela vivência – atenta.

m campo, Marinho dribla, ousa, provoca. Com estilo autêntico, já usou dreads, tranças, pintou e até descoloriu o cabelo. As tatuagens assinam a personalidade de alguém que resiste a todo tipo de preconceito.

Ver o Marinho lá na rede social é muito da hora, mas ninguém pagou o preço como eu paguei. Muita gente quer viver o que eu vivo, mas muita gente desistiria no primeiro momento. E nesse momento, eu persisti.
— Marinho, atacante do Fortaleza.
Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

— Uma vez eu achava que eu tinha que me moldar ao que o mundo queria. E hoje eu uso cabelo rosa, azul, roxo, faço dread, trança, porque eu sei quem sou. E eu não posso viver de acordo com o que o mundo quer. Eu vivo como eu acredito, essa é a minha raiz. O lado humano precisa falar mais do que o status — afirmou.

— Às vezes as pessoas me veem vestido com uma determinada roupa e pensam: “ah, esse cara deve ser mala”, mas elas não param para conversar comigo. Antes de você falar de alguém é importante conhecer a pessoa.

Punições exemplares e ensinamentos necessários

Em fevereiro de 2023, a CBF instituiu punições por racismo em competições brasileiras. No novo regulamento, há algumas sanções previstas com multa de até R$ 500 mil, perda de mando de campo ou jogo com portões fechados. Ainda há o caso de perda de pontos.

Em maio deste 2024, a Fifa obrigou as filiadas a incluírem, em seus códigos disciplinares, artigos específicos para enquadrar crimes de racismo com “sanções próprias e severas”, incluindo o encerramento do jogo – com derrota do time que estiver associado ao ato racista.

— Quando você vê que as punições começam a ficar mais severas, as pessoas que são racistas pensam mil vezes antes de falar alguma coisa. Talvez ela ainda vá no estádio para xingar, desmerecer alguém. Talvez. Mas acho que ela vai pensar muito. Porque antes ela xingava, jogava a banana, chamava de macaco, e estava tudo certo. Ela saía do estádio e depois voltava em outro jogo. Quando é uma situação que possa ser mais severa a pena, uma pena bruta mesmo, acho que vai começar a servir melhor. Enquanto isso, vai ser mais do mesmo — aponta Marinho.

Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Marinho, Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

O jogador elogiou o atual clube, Fortaleza, por sempre tocar em pontos importantes com atletas e torcida. Nos últimos anos, o Leão do Pici já protagonizou ações contra o racismo, além de denunciar e colaborar com investigações de denúncias racistas contra seus atletas nas mais diversas modalidades.

— O Fortaleza é um clube que sempre está conversando com jogadores, com a comissão, sempre passando essa visão do assunto. É um clube que tem muitos jogadores negros. O mais importante nessas horas é a gente ter o clube como exemplo. Se a gente quer ver mudança, a gente tem que ser a mudança. E ela começa dentro de cada um, dentro do trabalho, de casa — afirmou.

Do campo, ouvir insultos racistas incomoda, mas não abala mais tanto quanto antes. O que ainda surpreende o jogador (e pai, vale lembrar) é quando crianças protagonizam as ações da arquibancada.

— Eu entendo ter rivalidade. Mas tem cada coisa que a gente escuta criança falando… os pais xingam e a criança xinga também. Isso é um espelho. Uma criança com 10, 12 anos, estar xingando assim? Muitas das vezes minha mãe sofre bastante. E eu nem falo para ela, mas mãe, te xingam um monte. Mas tem uma coisa que não vai mudar. Eles não vão tirar minha concentração falando da minha mãe, me chamando de negro, me chamando de macaco, isso não vai mudar a minha cabeça, ela está 100% focada em fazer o melhor pelo meu clube — frisou.

Fica o aviso. Vocês que estão em casa, não vão para o estádio para xingar, falar da mãe, do pai, desmerecer. Se você é racista, fique em casa. Porque isso não vai abalar atleta, jogador, que a gente está acostumado com isso. Você vai perder seu tempo…”
— Marinho, atacante do Fortaleza.

Em campo, Marinho segue a trajetória com a mesma determinação que o levou a superar os desafios de uma infância marcada por preconceitos e limitações. Tem fé e acredita em um mundo mais igual. Atenta ainda para o lembrete do início da reportagem, de que a luta contra o racismo precisa ser constante e abraçada por todos.

— A gente não pode ficar simplesmente nessa pauta quando é perto da data. A gente só ganha voz quando é essa data — reitera o jogador.

— Que essa pauta não fique no ar por uma semana e depois suma. Sabe o que aconteceu com as pessoas que eram amigas de quem foi racista comigo? Continuaram sendo amigas de chefe, e isso é prêmio para racista. Quem passa por isso, sofre no peito, sofre na alma. Espero que um dia mude isso. Que quem cometa, não ganhe fama. Até que ponto isso vai chegar? Vai dar fama para eles até quando? Essa é a mensagem — concluiu.

Marinho, do Fortaleza, em entrevista ao ge — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Marinho, do Fortaleza, em entrevista ao ge — Foto: Fabiane de Paula/SVM

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