Arcabouço tem brecha para governo usar receita extra para elevar gasto em 2024
O texto do arcabouço fiscal aprovado pela Câmara dos Deputados tem uma brecha que pode ser usada pelo governo Lula (PT) para elevar os gastos em 2024 com base em receitas extraordinárias.
Esse tipo de arrecadação foi excluído do cálculo da regra geral para evitar a expansão de despesas com base em receitas incertas. Mas um dispositivo inserido na reta final das negociações tem gerado dúvidas e pode deixar a porta aberta para a adoção de entendimento diferente no ano que vem, caso seja conveniente para o governo.
O arcabouço fiscal prevê um limite de despesas anual que cresce acima da inflação, em proporção equivalente a 70% da alta real das receitas em 12 meses até junho do ano anterior. Este percentual deve seguir um piso de 0,6% e um teto de 2,5% ao ano.
O artigo 15 do texto diz que, após a segunda avaliação bimestral de receitas e despesas primárias, que ocorrerá em maio de 2024, o governo poderá ampliar os gastos no montante equivalente à diferença entre 70% do “crescimento real da receita estimado nesta avaliação em relação ao realizado em 2023” e o valor calculado como limite de alta real das despesas na Lei Orçamentária Anual.
No Ministério da Fazenda, a expectativa é que os gastos tenham uma expansão de cerca de 1,5% acima da inflação na elaboração da LOA, conforme a regra do arcabouço. Mas a versão aprovada permite que essa alta chegue ao teto de 2,5% no ano que vem, caso haja ganho mais expressivo de arrecadação em 2024.
O diferencial de 1% seria o limite extra obtido pelo governo para gastos no exercício.
O artigo, no entanto, não faz menção explícita ao trecho do projeto de lei que manda descontar das receitas a arrecadação obtida com concessões, dividendos, royalties, resgate de recursos abandonados do PIS/Pasep e programas de renegociação tributária (Refis) que sejam instituídos após a promulgação do novo arcabouço.
Esse ponto tem relevância por causa da regra de crescimento da despesa, que é diretamente ligada à dinâmica das receitas.
Técnicos que participaram da discussão do texto aprovado na Câmara foram consultados pela Folha e tiveram, como primeira reação, reconhecer a falha na redação do artigo, com a ponderação de que a brecha talvez não fosse tão favorável ao governo.
Há uma expectativa de maior arrecadação extraordinária no segundo semestre de 2023. A base de comparação elevada tornaria mais difícil a tarefa do governo de exibir o ganho de receitas necessário para expandir seus gastos.
Horas depois, no entanto, os mesmos técnicos mudaram de entendimento e avaliaram que é preciso interpretar o dispositivo para chegar à conclusão de que o cálculo deve seguir a regra permanente.
Já economistas de mercado que notaram a dubiedade da redação dizem que o mais lógico seria descontar as receitas extraordinárias, como na regra geral. Mas eles alertam que o texto, do jeito que está, permite ao governo lançar mão de medidas pontuais (como um Refis) em 2024 e moldar a interpretação do artigo para que essa arrecadação seja contabilizada e o conduza à almejada expansão real de 2,5% nas despesas, caso perceba que esse objetivo está ameaçado.
Procurado, o Ministério da Fazenda disse que “as receitas a serem contabilizadas para que se determine o crescimento real da despesa são aquelas que excluem as receitas extraordinárias em todo o período”. “É isso o que fica estabelecido pelo novo regime fiscal sustentável, no entendimento do Ministério da Fazenda”, afirma.
A reportagem questionou especificamente sobre o artigo 15, mas a pasta não esclareceu se essa leitura vale inclusive para a aplicação desse dispositivo.
O trecho alvo do ruído foi redigido de última hora, na própria terça-feira (23) em que ocorreu a votação do texto-base. Técnicos envolvidos reconhecem que sempre há risco de brechas remanescentes nesses casos.
Uma eventual correção só poderá ser feita no Senado Federal, para onde o texto seguiu após a conclusão da votação na última quarta-feira (24).
O economista Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal da FGV Ibre, diz que o artigo 15 ficou “muito confuso”.
“A comparação da projeção de receita de 2024 com o total arrecadado para 2023 não é precisa e pode gerar confusão. O artigo não parece tratar do mesmo conceito de receita da regra de despesa. Se o entendimento estiver correto, é possível gerar ganhos de arrecadação com medidas pontuais para ampliar a despesa de 2024. Isso pode gerar insegurança jurídica”, avalia.
O artigo 15 foi o resultado de uma das negociações mais sensíveis no âmbito da discussão do arcabouço fiscal no Congresso.
Com receio de não ter espaço para acomodar o crescimento das despesas em 2024, o Ministério da Fazenda pediu ao relator, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), que fixasse a alta das despesas no teto de 2,5% no primeiro ano da regra, o que gerou enorme ruído no Congresso e no mercado financeiro.
Para desfazer o mal-estar, o relator ajustou seu parecer e incluiu um meio-termo que inicialmente restringe a expansão de gastos do governo, mas autoriza a abertura de novos créditos em caso de surpresa positiva do lado das receitas.
Nos cálculos da consultoria da Câmara, o texto aprovado pelos deputados deve resultar em um aumento inicial no limite de despesas de 1,15% a 1,8% acima da inflação.
Caso consiga elevar a arrecadação no ano que vem para usufruir do dispositivo do artigo 15, o governo poderá fazer um gasto extra de R$ 15 bilhões a R$ 28 bilhões em 2024, segundo estimativas da Câmara.