De falhas na proteção a mais casos: o cenário atual da violência contra a mulher
Especialista em defesa dos direitos das mulheres analisa dados de Goiás e do Brasil, além de apontar dificuldades e ações positivas para reduzir os índices

O cenário de combate à violência contra a mulher revela diversas dificuldades para a redução mais efetiva dos índices de feminicídio e agressões domésticas. É isso o que analisa a advogada Ana Carolina Fleury, que atua há mais de dez anos como especialista em defesa de direitos das mulheres. Os problemas vão desde o alto número de casos de violência a desmonte de políticas públicas e falhas graves no atendimento às vítimas, conforme aponta.
Em Goiás, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 registrou aumento de 34% nos atendimentos e de 26,9% nas denúncias em 2024, em comparação ao ano anterior. O balanço anual, que foi divulgado em fevereiro pelo Ministério das Mulheres, aponta ainda que a maioria de atos violentos foi cometida por esposos, companheiros e ex-companheiros das vítimas. No Brasil, o número de denúncias e atendimentos também cresceu em 2024, sendo mais recorrentes as violências psicológica, física, patrimonial, sexual e moral e o cárcere privado.
A advogada, que também é mestra em Educação pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e já fez pesquisas pela Universidade de São Paulo (USP), avalia que existe uma relação direta do avanço do conservadorismo na política e na sociedade com o aumento da violência contra a mulher. Isso pode ser verificado não apenas em nível nacional, como global, pois o mais recente Anuário da ONU Mulheres revelou que esse tipo de violência cresceu em todos os continentes.
Fleury complementa que o problema também passa pela desigualdade de renda, “por isso mulheres que não têm liberdade financeira tendem a ficar mais tempo em relações abusivas”. Os dados do Ligue 180 seguem no mesmo sentido do DataJud, o sistema para consulta do Conselho Nacional de Justiça, que mostrou que Goiás teve um aumento de 52% na quantidade de novos processos judiciais relacionados a feminicídio e de 22% nos de violência doméstica, em 2024.
Em todo o Brasil, foram mais de 950 mil novos processos por violência doméstica no ano passado. “Existem diversos fatores que justificam esses aumentos. Mais mulheres denunciam as violências que sofrem, o que é fruto de mais informações e redes de apoio. Por outro lado, a sociedade vive um período histórico marcado pela ascensão da misoginia e pensamentos conservadores que almejam colocar as mulheres novamente em posições de subordinação aos homens, resultando em mais mulheres sofrendo agressões”, explica a especialista.
Atendimento às vítimas
Outro problema que pode ser verificado no cenário atual de combate à violência contra a mulher é o tratamento dado às vítimas pelo poder público. O recente caso de uma mulher assassinada em Mato Grosso do Sul logo após ter buscado atendimento na Casa da Mulher Brasileira ganhou grande repercussão, com a divulgação de um áudio em que ela reclama do serviço prestado. As falhas nesse atendimento específico evidenciam um problema muito maior, conforme detalha a advogada Ana Carolina Fleury.
“As reclamações das vítimas são sempre as mesmas e, em mais de uma década de atuação na área, não vi mudanças nos relatos sobre grosseria, revitimização, desencorajamento a denúncias, perguntas inadequadas e falta de providências. A grande questão é a falta de capacitação que o Estado deveria proporcionar aos servidores”, relata a especialista em defesa dos direitos das mulheres. Ela completa reforçando que é necessário o combate à violência contra a mulher ser prioridade no Brasil e faz uma crítica.
“A sociedade ainda é impactada por um desmonte de políticas públicas ocorrido nos últimos anos, pois isso se prorroga ao longo do tempo. Um ganho de política pública leva anos para ter seus efeitos sentidos no dia a dia, mas uma perda é sentida imediatamente e por muitos anos”, pontua. Em relação especificamente ao atendimento em delegacias, Fleury indica que esses locais deveriam reunir serviços de assistência social, sistema judiciário, encaminhamento para abrigos e atendimento psicológico, médico e hospitalar para as mulheres, por exemplo.
Além disso, ela reforça a importância de as vítimas estarem acompanhadas por advogados especializados, até mesmo para reduzir a ocorrência de situações de revitimização no local em que elas deveriam ser protegidas. “A delegacia para mulheres vítimas de violência é – ou, pelo menos, deveria ser – porta de entrada para uma rede de apoio que ajude a mulher a sair da situação em que está e se proteger”, ressalta.
A mestra em Educação levanta ainda outro problema: a falta de treinamento dos servidores para lidar com questões étnicas e raciais, o que torna a revitimização de mulheres negras e indígenas ainda maior. Esse fator é importante, ainda mais levando em consideração que, tanto em Goiás quanto em todo o Brasil, mais da metade das vítimas de violência doméstica é de mulheres negras, como apontam os dados de 2024 do Ligue 180.
Novidades importantes
Apesar de ainda haver muitos problemas no combate à violência contra a mulher, algumas novas medidas prometem melhorar o panorama atual. O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) anunciou, há menos de duas semanas, a criação do Observatório de Feminicídio e Violência Doméstica Contra a Mulher. O objetivo é fazer com que processos de feminicídio e outros tipos de violência contra a mulher ganhem mais rapidez no sistema judiciário.
“A ideia do Observatório é ótima, pois é muito importante que casos de violência doméstica tenham mais atenção por causa de particularidades em comparação a outros casos, como a vulnerabilidade de mulheres e crianças e a necessidade de providências rápidas. Os dados que serão analisados pelo Observatório são indispensáveis para mensurar os problemas e pensar em políticas públicas e ações mais eficazes para o enfrentamento desse tipo de violência”, celebra Ana Carolina Fleury. Outra medida positiva é a possibilidade de acesso aos dados dos antecedentes criminais de violência contra a mulher para fins de consulta.
Um projeto de lei começou a tramitar em fevereiro na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, mas já há um projeto de mesmo teor para alcance nacional de autoria da deputada federal goiana Silvye Alves, que tramita na Câmara dos Deputados desde o ano passado. “As mulheres precisam ter o direito de procurar sobre a vida pregressa dos seus parceiros, porque isso é capaz de salvar vidas. O autor do recente feminicídio em Mato Grosso do Sul é um exemplo de homem que já colecionava processos desse tipo”, alerta Fleury.
Por: Ananda Petineli